quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Crimes contra o serviço militar: sobre a insubmissão



CELSO TARCISIO BARCELLI[1]


Resumo

A intenção deste trabalho é colaborar com a propagação do verdadeiro papel da Justiça Militar. Pouco conhecida da população em geral, apesar de ser a mais antiga do País. Deste modo vamos apresentar algumas considerações sobre o crime de insubmissão, que pode ser cometido apenas por civis e é julgado perante a Justiça Militar da União.

Palavra chave: Justiça Militar. Forças Armadas. Crime Militar. Insubmissão.



Introdução

A Justiça Militar e os crimes militares são ilustres desconhecidos para a maior parte da sociedade brasileira, embora a Justiça Castrense tenha sido a primeira a ser instituída no Brasil.

Quando se fala em Justiça Militar, por influência da mídia, logo se pensa em corporativismo e que somente militares respondem perante esta justiça especializada, pensamento, obviamente, equivocado quando se trata da Justiça Militar da União.

Pois bem, a Justiça Militar, duramente atacada pelo ilustre presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Joaquim Barbosa, julga crimes militares, o que implica em julgar civis e militares que cometem este tipo de delito.

Cremos que o eminente Ministro Joaquim Barbosa se equivocou na sua análise da Justiça Militar, examinou apenas o número de processos julgados, sem, contudo, avaliar a importância desta Justiça Especial, que tem como objetivo tutelar os bens jurídicos afetos as Forças Armadas.

Todos sabem que uma nação não é soberana se não dispuser de uma tropa bem treinada e adestrada para sua proteção, é neste contexto que se reconhece a grande importância da Justiça Militar, uma vez que sua missão é manter íntegros os pilares de sustentação das Forças Armadas (hierarquia e disciplina) através da aplicação da Lei Militar e punido aqueles que violem esta norma pondo em risco as instituições militares.

Em tempos de Boinas Verdes, “Delta Force”, “Seal Team Six”, “Shayetet 13” entre tantas outras forças especiais, ganha força a importância cada vez maior dos exércitos profissionais.

Mas não se pode duvidar da importância de se manter um corpo de reservistas, pois em momentos de graves crises pelos quais já passou a humanidade apenas forças especializadas não são capazes de dar a resposta almejada na proteção da nação.

De tal sorte que a Constituição da República estabelece o dever de todos colaborarem com a defesa da pátria via serviço militar obrigatório (art. 143 da CF).

Neste prisma, o art. 183 do Código Penal Militar prevê o crime de insubmissão que pune aqueles que violam o dever de prestar serviço militar.

Crime este que somente pode ser cometido por civil e é julgado pela Justiça Militar da União.

Daí decorre a importância do nosso trabalho, trazendo ao conhecimento do público as premissas deste delito, desmistificando a ideia de que somente militares responde perante a Justiça Militar e demonstrando a missão máxima desta Justiça Especial que é tutelar os pilares das instituições militares e por consequência a proteção da soberania da nação.

 1- Do serviço militar obrigatório

Esclarece José Afonso da Silva que todas as Constituições brasileiras trouxeram normas das obrigações dos brasileiros relativas à defesa da pátria. Porém somente após a campanha idealizada pelo poeta Olavo Bilac em favor do serviço militar obrigatório para aqueles que se revelassem aptos, via recrutamento anual e dentro dos limites dos efetivos estabelecidos em lei, é que foi criada a obrigação de servir nas Forças Armadas.[2]

De tal modo, o art. 143 da Constituição Cidadã de 1988 manteve o serviço militar obrigatório na forma da lei.

O Serviço Militar consiste no exercício de atividades específicas, desempenhadas nas Forças Armadas - Marinha, Exército e Aeronáutica. [3]

Em tempo de paz é possível a prestação de serviço alternativo, bem como as mulheres e os eclesiásticos ficam isento do serviço militar, sujeitos, porém, a outros encargos que a lei lhes atribuir.

Vejamos o dispositivo constitucional:

“Art. 143. O serviço militar é obrigatório nos termos da lei.
§ 1º - às Forças Armadas compete, na forma da lei, atribuir serviço alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem imperativo de consciência, entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa e de convicção filosófica ou política, para se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar.
§ 2º - As mulheres e os eclesiásticos ficam isentos do serviço militar obrigatório em tempo de paz, sujeitos, porém, a outros encargos que a lei lhes atribuir.”


Na lição de Uadi Lammêngos Bulos, o serviço militar é obrigatório porque é oneroso e ninguém, nem por condição religiosa ou social, pode deixar de cumprir esta obrigação [4]

Neste sentido leciona José Afonso da Silva:

“Justifica-se, porém, a determinação constitucional, pois se trata de obrigação sumamente onerosa, não só por afastar o indivíduo do seio da família e de suas atividades, como por exigir, às vezes, o tributo da própria vida.” [5]

Consoante o § 1º do aludido comando constitucional, em tempos de paz, os alistados podem alegar imperativo de consciência, entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa e de convicção filosófica ou política, para se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar, é a chamada escusa de consciência, todavia quem alega escusa de consciência deve prestar serviço alternativo atribuído pelas Forças Armadas na forma da lei.

Os serviços alternativos são atividades de caráter administrativo, assistencial, filantrópico ou mesmo produtivo, em substituição às atividades de caráter essencialmente militar.[6]
Cabe apontar que aquele que se negar a prestação do serviço militar obrigatório ou à obrigação alternativa fica sujeito a perda dos direitos políticos, conforme art. 15, IV, da Constituição. 

Destaca-se que as mulheres e os eclesiásticos ficam isentos do serviço militar obrigatório em tempo de paz, sujeitos a outros encargos atribuídos por lei.


2 – Do crime de Insubmissão

Ensina José Afonso da Silva que lutar pela sobrevivência da pátria contra qualquer inimigo, mais que uma obrigação descrita na Constituição, é um dever ético de cada membro da comunidade nacional.[7]

Assim sendo, o crime de insubmissão é descrito no tipo do art. 183 do Código Penal Militar, a norma legal visa dar maior proteção a este dever ético de defesa da pátria em harmonia com o art. 143 da Constituição Federal, portanto o dispositivo tutela o Serviço Militar.

Transcrevemos o tipo legal:

“Art. 183. Deixar de apresentar-se o convocado à incorporação, dentro do prazo que lhe foi marcado, ou, apresentando-se, ausentar-se antes do ato oficial de incorporação:
Pena - impedimento, de três meses a um ano.
Caso assimilado
§ 1º Na mesma pena incorre quem, dispensado temporàriamente da incorporação, deixa de se apresentar, decorrido o prazo de licenciamento.
Diminuição da pena
§ 2º A pena é diminuída de um têrço:
a) pela ignorância ou a errada compreensão dos atos da convocação militar, quando escusáveis;
b) pela apresentação voluntária dentro do prazo de um ano, contado do último dia marcado para a apresentação.”

Levando em conta a doutrina clássica, que entende que crime propriamente militar é aquele que pode ser cometido apenas por militar, o delito seria impropriamente militar, pois só pode ser cometido pelo civil convocado e não por militar, no entanto mesmos os clássicos entendem que é crime propriamente militar, constituindo uma exceção a regra, principalmente pelo disposto no art. 464, § 2º, do Código de Processo Penal Militar.

Adotando a doutrina penal comum, que entende que crime propriamente militar é aquele que possuem definição no CPM diversa da lei penal comum ou nela não previsto, o delito seria propriamente militar, uma vez que só é previsto no Código Penal Militar sem correlato na Lei Penal comum (art. 9º, I, do CPM).

Paulo Tadeu Rodrigues Rosa argumenta que o crime só pode ser cometido por pessoa do sexo masculino, já que não existe serviço militar obrigatório para mulheres.[8]

Portanto, o sujeito ativo do delito é o civil selecionado e convocado à incorporação[9] que não se apresenta no prazo marcado, ou quem depois de se apresentar se ausenta antes do ato de incorporação.

O jovem que não se apresenta para seleção ou se ausenta antes de completá-la é considerado refratário[10]. O sujeito passivo é a instituição militar.

Cabe observar que o crime é inexistente no âmbito das Polícias Militares e corpos de Bombeiros Militares, pois não existe serviço militar obrigatório nas Forças Militares Estaduais.[11]

Insubmissão significa desobediência; o tipo objetivo prevê três modalidades de insubmissão[12], a saber:

a) na primeira, o convocado para incorporação deixa de se apresentar à Instituição Militar no prazo que lhe foi determinado;

b) na segunda, o convocado se apresenta no prazo determinado, mas, logo depois, ausenta-se antes da formalização do ato oficial de incorporação;

c) o § 1º do artigo em comento traz a terceira hipótese, trata-se do caso assimilado, que alcança aquele que, dispensado temporariamente da incorporação, deixa de se apresentar, findo o prazo de licenciamento.

A polêmica se instaura quanto ao Tiro de Guerra.

Para o Supremo Tribunal Federal a falta de matrícula em Tiro de Guerra não configura o delito dada revogação pelo CP Militar de 1969 do art. 25 da Lei do Serviço Militar (Lei 4.735/64), de modo a reduzir a incriminação à falta de apresentação do convocado para incorporação, mas não para a matrícula, porque os institutos são diferentes, na incorporação há a inclusão do convocado na Força, contudo na matrícula o convocado é apenas admitido para freqüentar curso de formação de reserva; segundo argumenta-se o matriculado em Tiro de Guerra não é militar para efeitos da lei penal militar, já que se quer ocupa posto ou graduação (RHC 77272, Relator(a):  Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 22/09/1998, DJ 06-11-1998 PP-00033 EMENT VOL-01930-01 PP-00190). 

O Superior Tribunal Militar já decidiu em sentido contrário; vejamos:

HABEAS CORPUS. INSUBMISSÃO. MATRÍCULA EM TIRO DE GUERRA. Comete, em tese, crime de insubmissão, o convocado para prestar o serviço militar em Órgão de Formação de Reserva, entre os quais se incluem os Tiros de Guerra, que deixar de atender a essa convocação. Precedentes da Corte. Ordem denegada. Decisão unânime.
(Num: 1998.01.033321-5 UF: SP Decisão: 24/03/1998
Proc: HC - HABEAS CORPUS Cód. 180)

O elemento subjetivo “é o dolo, a vontade livre o consciente de não prestar o serviço militar, não há forma culposa. O civil, para ser considerado insubmisso, deve saber o dia, a hora e o local da apresentação para a incorporação, nos termos da Súmula 7 do STM.” [13]

A consumação ocorre quando o convocado não comparece à Instituição Militar no limite do tempo que lhe foi concedido para tal ou quando se ausenta, tendo já se apresentado para a incorporação que ainda não foi oficializada.

Não é possível tentativa, porque o crime é omissivo na primeira hipótese e de mera conduta na segunda.

A pena descrita no preceito secundário é de impedimento, de três meses a um ano.
O impedimento consiste na permanência do condenado em recinto de unidade militar, sem prejuízo da instrução militar.

No § 2º estão previstas duas hipótese de minoração da pena em um terço; uma com base na ignorância ou errada compreensão dos atos da convocação militar, quando escusáveis; a outra é de arrependimento posterior do agente que se apresenta voluntariamente dentro do prazo de um ano, contado do último dia marcado para a apresentação.

3 – Alguns aspectos processuais

Consumado o crime de insubmissão será lavrado o termo de insubmissão (art. 463 do CPPM), referido termo autoriza a prisão do insubmisso (art. 463,§ 1º, CPPM c/c art. 5º, inc. LXI, da Constituição da República).

O termo de insubmissão e os documentos que o acompanham serão encaminhados ao Juiz-Auditor que determinará sua atuação e dará vista do processo, por cinco dias, ao Ministério Público, que requererá o que for de direito, aguardando-se a captura ou apresentação voluntária do insubmisso.

O insubmisso capturado ou que se apresente voluntariamente não será recolhido à prisão, mas será colocado em menagem no quartel, nos termos do art. 464 c/c art. 266, ambos do Código de Processo Penal Militar.

A menagem (art. 263 e seguintes do CPPM) é uma prisão cautelar concedida ao militar ou civil que tenha praticado um crime militar cuja pena privativa de liberdade em abstrato não exceda quatro anos; é um benefício concedido ao acusado para se evitar que este fique em um estabelecimento prisional. [14]

Capturado ou apresentado voluntariamente o insubmisso é submetido à inspeção de saúde; se for considerado apto para o serviço militar será incorporado; se for considerado inapto, o processo é arquivado; a incorporação do insubmisso às Forças Armadas é condição de procedibilidade, sem ela o MP não pode oferecer denuncia.

Não sendo julgado em sessenta dias após a captura ou apresentação o insubmisso é colocado em liberdade.

4 - Conclusão

O crime de insubmissão tem fundamento na Carta da República (art. 143) e é previsto no Código Penal Militar (art. 183).

Tutela o serviço militar.

O serviço militar tem pedra angular no dever ético de cada membro da comunidade nacional para com a defesa da pátria.

Destarte, quem comete o crime de insubmissão viola um dever ético a todos imposto, devendo por conta disto responder no limite de sua culpabilidade na forma da lei.





Referências Bibliográficas

BULOS, Uadi Lammêngo – Direito Constitucional ao alcance de todos. – São Paulo: Saraiva, 2009.
ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues – Código penal militar comentado – artigo por artigo – Belo Horizonte; Ed. Líder, 2009.
ROSSETO, Enio Luiz – Código penal militar comentado – 1. ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.
SILVA, José Afonso da - Curso de Direito Constitucional Positivo-, Malheiros Editores, 30ª edição, 2007.
ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues. MENAGEM. In: Artigos Jurídicos - advogado.adv.br. Disponível em:
Acesso em: 08 jun. 2014.


[1] Procurador do Município de Sorocaba; Foi Policial Militar em São Paulo; Bacharel em Direito; Aluno da pós-graduação em Direito Militar da Universidade Cruzeiro do Sul.

[2] SILVA, José Afonso da - Curso de Direito Constitucional Positivo-, Malheiros Editores, 30ª edição, 2007, p 774.

[3] Lei 8.239/1991: “Art. 1º O Serviço Militar consiste no exercício de atividades específicas, desempenhadas nas Forças Armadas - Marinha, Exército e Aeronáutica.  Art. 2º O Serviço Militar inicial tem por finalidade a formação de reservas destinadas a atender às necessidades de pessoal das Forças Armadas no que se refere aos encargos relacionados com a defesa nacional, em caso de mobilização.”

[4] BULOS, Uadi Lammêngo – Direito Constitucional ao alcance de todos. – São Paulo: Saraiva, 2009, p. 561.

[5] SILVA, José Afonso da - Curso de Direito Constitucional Positivo-, Malheiros Editores, 30ª edição, 2007, p. 775.

[6] Art. 3º da Lei 8.239/1991:Art. 3º O Serviço Militar inicial é obrigatório a todos os brasileiros, nos termos da lei. § 1º Ao Estado-Maior das Forças Armadas compete, na forma da lei e em coordenação com os Ministérios Militares, atribuir Serviço Alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem imperativo de consciência decorrente de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, para se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar. § 2° Entende-se por Serviço Alternativo o exercício de atividades de caráter administrativo, assistencial, filantrópico ou mesmo produtivo, em substituição às atividades de caráter essencialmente militar. § 3º O Serviço Alternativo será prestado em organizações militares da ativa e em órgãos de formação de reservas das Forças Armadas ou em órgãos subordinados aos Ministérios Civis, mediante convênios entre estes e os Ministérios Militares, desde que haja interesse recíproco e, também, sejam atendidas as aptidões do convocado.”

[7] Idem

[8] ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues – Código penal militar comentado – artigo por artigo – Belo Horizonte; Ed. Líder, 2009, p 110.

[9] Nos termos da lei do Serviço Militar (Lei n. 4.375, de 17 de agosto de 1964)

[10] ROSSETO, Enio Luiz – Código penal militar comentado – 1. ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, 578.

[11] O que segundo Rosa (p. 111) deveria ser repensado para busca de uma maior integração entre a sociedade e as Polícias Militares.

[12] ROSSETO, p. 578.

[13] Idem, p. 580

[14] ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues. MENAGEM. In: Artigos Jurídicos - advogado.adv.br. Disponível em:
Acesso em: 08 jun. 2014.

sábado, 30 de agosto de 2014

O emprego das alterações do Código de Processo Penal Comum no Processo Penal Militar: interrogatório como último ato da instrução



CELSO TARCISIO BARCELLI[1]


Resumo
O objetivo deste trabalho não é trazer qualquer inovação, mas apenas contribuir com o debate já existente no tocante à aplicação das alterações ocorridas no processo penal comum ao processo penal militar, especificamente no que diz respeito à inversão do interrogatório, que no processo comum passou a ser o último ato de instrução; assim marcaremos nossa posição nos filiando à corrente que defende aplicação da aludida alteração na Justiça Militar.

Palavra chave: Polícia Militar. Forças Armadas. Processo Penal. Interrogatório.

Introdução

Em 2008 o Código de Processo Penal comum (CPP) foi alterado para colocar o interrogatório como último ato da instrução do processo.

Conforme vem ocorrendo há anos, o Código de Processo Penal Militar (CPPM) não foi alterado, de modo que o interrogatório na Justiça Militar ainda é o primeiro ato de instrução do processo.

Porém, a alteração do CPP é mais benéfica para a defesa, porque se o interrogatório ocorre ao final, depois de colhida todas as provas, o acusado tem melhores condições de apresentar sua versão dos fatos, já que teve prévio conhecimento do acervo probatório.

Neste contexto, passaremos a defender, com supedâneo na dignidade da pessoa humana – que é fundamento do Estado Brasileiro – e no direito à plenitude de defesa, que alteração do CPP deve ser aplicada na Justiça Militar.

1- Princípios Constitucionais
1.1 – Dignidade Humana

Diz José Afonso da Silva que “a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida”.[2]

Para Uadi Lammêngo Bulos, o conteúdo do princípio é vigoroso, envolve valores espirituais e materiais, reflete conjunto de valores incorporados ao patrimônio do homem, interliga-se às liberdades públicas em sentido amplo.[3]

Assim, a dignidade humana é norte interpretativo de todo o ordenamento jurídico, figurando como fundamento do Estado Brasileiro, nos termos do art. 1º da Constituição da República.[4]

Vale transcrever algumas decisões do Supremo Tribunal Federal acerca do aspecto interpretativo do aludido princípio constitucional; vejamos:


“[...] O postulado da dignidade da pessoa humana, que representa – considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) – significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País, traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo [..]”’ (RE 477.554-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 16-8-2011, Segunda Turma, DJE de 26-8-2011).

“Uso de substância entorpecente. Princípio da insignificância. Aplicação no âmbito da Justiça Militar. (...) Princípio da dignidade da pessoa humana. Paciente, militar, preso em flagrante dentro da unidade militar, quando fumava um cigarro de maconha e tinha consigo outros três. Condenação por posse e uso de entorpecentes. Não aplicação do princípio da insignificância, em prol da saúde, disciplina e hierarquia militares. A mínima ofensividade da conduta, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica constituem os requisitos de ordem objetiva autorizadores da aplicação do princípio da insignificância. A Lei 11.343/2006 – nova Lei de Drogas – veda a prisão do usuário. Prevê, contra ele, apenas a lavratura de termo circunstanciado. Preocupação do Estado em mudar a visão que se tem em relação aos usuários de drogas. Punição severa e exemplar deve ser reservada aos traficantes, não alcançando os usuários. A estes devem ser oferecidas políticas sociais eficientes para recuperá-los do vício. O STM não cogitou da aplicação da Lei 11.343/2006. Não obstante, cabe a esta Corte fazê-lo, incumbindo-lhe confrontar o princípio da especialidade da lei penal militar, óbice à aplicação da nova Lei de Drogas, com o princípio da dignidade humana, arrolado na Constituição do Brasil de modo destacado, incisivo, vigoroso, como princípio fundamental (...) Exclusão das fileiras do Exército: punição suficiente para que restem preservadas a disciplina e hierarquia militares, indispensáveis ao regular funcionamento de qualquer instituição militar. A aplicação do princípio da insignificância no caso se impõe; a uma, porque presentes seus requisitos de natureza objetiva; a duas, em virtude da dignidade da pessoa humana. Ordem concedida." (HC 92.961, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 11-12-2007, Segunda Turma, DJE de 22-2-2008).


Nas decisões transcritas resta claro que a dignidade humana deve inspirar todo o ordenamento jurídico; ainda, o Supremo fez prevalecer a dignidade humana em prejuízo da especialidade da lei militar.

1.2 – Ampla Defesa

Consagrado no art. 5º, inc. LV, da Constituição Federal, é “corolário do contraditório. Um existe em função do outro. Do mesmo modo que não podemos segregar os dedos das mãos, a ampla defesa não pode ser separada do contraditório e vice-versa.” [5]

Fernando Capez define com maestria tal princípio, para o doutrinador a ampla defesa é o dever que tem o Estado de propiciar a todo acusado a mais completa defesa, seja pessoal (autodefesa), seja técnica (efetuado por defensor). De tal princípio origina-se a obrigação de se observar a ordem natural do processo, de modo que a defesa se manifeste sempre em último lugar, em qualquer situação em que a acusação se manifeste, deve, sempre, após, abrir-se a oportunidade da manifestação da defesa, tudo em obediência à plenitude de defesa.


2 – Natureza do Interrogatório


Na lição de Jorge César Assis, o interrogatório não é apenas meio de prova, mas, sim, e principalmente, meio de defesa do acusado, permitindo que este apresente a sua própria versão dos fatos.[6]

Capez argumenta que tem se reconhecido no interrogatório um meio de defesa. Concretiza um dos momentos do direito a ampla defesa, materializada na autodefesa na espécie direito de audiência. Neste prisma, o direito de audiência é a oportunidade que tem o acusado de influir no convencimento do juiz mediante o interrogatório.[7]

Por fim, cabe transcrever a valorosa lição de Tourinho Filho:

Sempre pensamos, em face da sua posição topográfica, fosse o interrogatório, também, meio de prova. E como tal era e é considerado. Meditando sobre o assunto – principalmente agora que a Constituição, no art. 5º, LXIII, reconheceu o direito ao silêncio -, chegamos à conclusão de ser ele, apenas meio de defesa.” [8]


Prossegue o professor Tourinho em sua obra argumentando que se o réu tem direito ao silêncio, sem que daí decorra qualquer conseqüência negativa, configurando o silêncio um direito fundamental, não se pode dizer que o interrogatório constitua meio de prova, pois caso contrário o acusado seria obrigado a responder.

De tal modo, não pairam dúvidas, o Juiz pode até obter prova através do interrogatório, mas a natureza de tal ato é de meio de defesa.



3- Alteração do Código de Processo Penal

As leis 11.689/2008 e 11.719/2008 alteraram Código de Processo Penal comum, assim o interrogatório que antes era o primeiro ato de instrução agora só ocorre após a colheita de todas as provas.

Isto ocorreu em respeito à ampla defesa, sendo o interrogatório ato de defesa, deve ser efetuado após a produção de todas as provas para que o acusado tenha oportunidade de se contrapor a elas.[9]

Na Ação Penal nº 528 o Ministro do STF Ricardo Lewandowski apontou que possibilitar que o réu seja interrogado ao final da instrução, depois de encerrada a colheitas das provas, é medida que beneficia a defesa, pois o acusado terá a oportunidade de esclarecer incongruências e divergências surgidas na instrução, tudo com fundamento no respeito ao contraditório e à plenitude de defesa, premissas do Estado Democrático de Direito aceitas por grande maioria das nações civilizadas.

Das razões expostas acima, é de se concluir que a intenção do legislador, ao inverter o interrogatório, tornando-o o último ato de instrução, foi de garantir a plenitude de defesa ao acusado, que conhecendo o acervo probatório terá condições melhores de se defender em seu interrogatório.


4 – Emprego das alterações do CPP no processo castrense: a inversão do interrogatório

As alterações introduzidas no Código de Processo Penal comum não foram reproduzidas no Código de Processo Penal Militar, mais uma vez o legislador parece ter se esquecido de modernizar o código castrense através das novas premissas constitucionais, de tal modo o interrogatório no processo penal militar ainda é o primeiro ato de instrução.

Ao se defender que, também no processo penal castrense, o interrogatório ocorra como último ato de instrução, não se fundamenta tal premissa no art. 3º do CPPM, é que aludido dispositivo é aplicável apenas quando houver omissão na lei militar.

Neste sentido, leciona Jorge César Assis:


“O suprimento que a lei processual penal militar permite é somente aquele que decorre da omissão da lei especial, vale dizer, da completa ausência de norma a regulamentar o vazio pretendido, pois se a lei processual penal militar dispuser de modo diverso da lei comum, tal suprimento não será possível” [10]


Portanto, note que não existe omissão da lei militar, o CPPM, nos arts. 402 e seguintes, estabelece claramente que o interrogatório é o primeiro ato de instrução do processo, ocorrendo logo depois de cumprida a citação, assim sendo não existe vazio a ser preenchido pela norma processual penal comum.

Os fundamentos para inversão do interrogatório no âmbito do processo militar decorrem dos princípios constitucionais.

Destarte, ficou assentado aqui que a dignidade humana é vetor interpretativo do ordenamento jurídico pátrio, tanto que o Supremo fez prevalecer tal princípio em detrimento da especialidade da lei militar no HC 92.961.

Convencionamos, apoiados na melhor doutrina, que a ampla defesa importa em garantir plenitude de defesa, devendo-se oportunizar ao acusado a oportunidade de autodefesa, bem como em qualquer situação a defesa deve se manifestar por último.

Ademais, a autodefesa é exercida pelo acusado através do seu interrogatório, oportunidade que ele tem para influir no convencimento do juiz.

Deste modo, não há como negar que o interrogado ao final da instrução, depois de encerrada a captação das provas, é medida que beneficia o acusado, pois ele terá a oportunidade de contrapor as provas produzidas, conhecendo as provas poderá fundamentar melhor a sua versão dos fatos.

Ora, dar ao réu a oportunidade de falar por último é homenagear a plenitude de defesa, porque inegável que o acusado pode formular melhor sua versão conhecendo as provas.

Ainda, o Supremo em outra oportunidade decidiu que a dignidade humana prevalece sobre a especialidade da lei militar, pois é vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional, logo, sendo a ampla defesa (plenitude de defesa) direito fundamental do homem, exercida diretamente pelo acusado através do interrogatório e sendo o interrogatório mais benéfico à defesa se realizado como último ato da instrução, não resta dúvida que as novidades do CPP devem ser aplicadas ao CPPM oportunizando que o acusado seja interrogado apenas após a colheita de todas as provas.

Nesta linha, Jorge Cesar Assis ao tratar do assunto, no seu Código de Processo Penal Militar Anotado, aduz que a cada alteração da legislação comum se debate acerca da aplicação da inovação na Justiça Militar, contudo a transposição das regras de lei comum à legislação militar deve preservar a índole do Processo Penal Militar; que fazem parte desta índole as prerrogativas militares, a obrigação de o acusado prestar sinal de respeito ao Conselho de Justiça, as prerrogativas do posto e graduação ainda que o militar esteja na reserva ou reformado; e finaliza que é razoável supor que entre outras inovações a inversão da oitiva do réu não ofende a índole do processo militar.[11]

Portanto, além da inversão do interrogatório – como último ato da instrução – ser medida que prestigia a ampla defesa e ser aplicável ao processo penal militar em razão da dignidade humana que prevalece sobre a especialidade da lei, também é medida que não ofende os postulados militares e a índole do processo penal militar, desta maneira não haveria razão para não promover tal inversão.

Cabe apontar um caso análogo em que o Supremo decidiu pela inversão em detrimento da especialidade da lei. Trata-se da Ação Penal 528 já citada aqui.

Na referida ação se discutia no tocante a aplicação do art. 400 do CPP aos procedimentos de Ação Penal Originária no Supremo disciplinado pela lei 8.038/1990.
Referida norma traz em seu art. 7º o interrogatório como primeiro ato da instrução; “in verbis”:

“ Art. 7º - Recebida a denúncia ou a queixa, o relator designará dia e hora para o interrogatório, mandando citar o acusado ou querelado e intimar o órgão do Ministério Público, bem como o querelante ou o assistente, se for o caso.”

De tal sorte que o dispositivo acima transcrito conflita com o art. 400 do CPP que com a reforma determina o interrogatório no fim da instrução.

A Corte Suprema acabou por decidir que, em que pese à especialidade da lei 8.038/90, deveria ser aplicado o art. 400 do CPP, pois o interrogatório ao final favorece o acusado, já que ele tem melhores condições de formular sua versão dos fatos conhecendo previamente o acervo probatório, tudo com fundamento na plenitude do direto de defesa e no contraditório.

Segue ementa do acórdão:

“EMENTA: PROCESSUAL PENAL. INTERROGATÓRIO NAS AÇÕES PENAIS ORIGINÁRIAS DO STF. ATO QUE DEVE PASSAR A SER REALIZADO AO FINAL DO PROCESSO. NOVA REDAÇÃO DO ART. 400 DO CPP. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
I – O art. 400 do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei 11.719/2008, fixou o interrogatório do réu como ato derradeiro da instrução penal.
II – Sendo tal prática benéfica à defesa, deve prevalecer nas ações penais originárias perante o Supremo Tribunal Federal, em detrimento do previsto no art. 7º da Lei 8.038/90 nesse aspecto. Exceção apenas quanto às ações nas quais o interrogatório já se ultimou.
III – Interpretação sistemática e teleológica do direito.
IV – Agravo regimental a que se nega provimento.”

(AP 528 AgR, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 24/03/2011, DJe-109 DIVULG 07-06-2011 PUBLIC 08-06-2011 EMENT VOL-02539-01 PP-00001 RT v. 100, n. 910, 2011, p. 348-354 RJSP v. 59, n. 404, 2011, p. 199-206)


Por fim, o art. 304 do CPP foi alterado com o objetivo de “agilizar” a liberação das pessoas envolvidas, na condição de condutor, vítima e testemunhas, na lavratura do auto de prisão em flagrante delito, em outras palavras, antes o flagrante era lavrado em única peça por todos assinado ao final, o que implicava em que o condutor da ocorrência tinha que esperar a oitiva de todos, fazendo com que as viaturas da PM ficassem retidas na Delegacia e as ruas desguarnecidas de policiamento, a mudança visou liberar mais rápido o policiamento.

Esta mudança não foi operada no CPPM que em seu art. 245 ainda prevê a lavratura em única peça.

Todavia, o Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo, em que pese não haver omissão na lei militar, aplicou o art. 3º do CPPM e editou o provimento 002/05 – CGer fazendo com que nova sistemática do APFD seja aplicada no Direito Processual Penal Militar.

O fundamento doTJM/SP foi o princípio da razoável duração do processo.

Do exposto, com maior razão entendemos que também a inversão do interrogatório deve ser aplicada no Processo Penal Militar, pois fundado no princípio da dignidade de pessoa humana, que é um valor supremo, bem como no direito à plenitude de defesa.


5 – Conclusão


O interrogatório é hoje meio de defesa que possibilita o exercício da autodefesa pelo acusado, tudo com fundamento nos contraditório e na ampla defesa (plenitude de defesa).

O interrogatório ao final da instrução é mais benéfico ao réu porque lhe dá a oportunidade de fundamentar melhor sua versão dos fatos, já que teve acesso prévio ao conjunto de provas.

Neste diapasão o CPP foi alterado para colocar o interrogatório como último ato da instrução.

No entanto, o CPPM não foi alterado.

Deve tal alteração ser aplicada ao processo militar, pois assim determina o princípio da dignidade humana, arrolado na Constituição como princípio fundamental que prevalece sobre a especialidade da lei militar, combinado com o direito à plenitude de defesa.

No mais, o interrogatório ao final da instrução não ofende a índole do processo penal militar.

Portanto, pugnamos para que o legislador altere o CPPM para que acompanhe, neste caso, a inovação do CPP e enquanto isto não ocorre entendemos que os tribunais devem inverter o interrogatório em respeito aos princípios constitucionais antes mencionados.


 Referências Bibliográficas


ASSIS, Jorge César de – Código de processo penal militar – 1º volume (artigos 1º a 383). – Curitiba: Juruá, 2012.

BULOS, Uadi Lammêngo – Direito Constitucional ao alcance de todos. – São Paulo: Saraiva, 2009.

CAPEZ, Fernando – Curso de processo penal. – 15. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2008.

MENDONÇA, Andrey Borges de – Nova reforma do Código de Processo Penal: comentado artigo por artigo. – São Paulo: Método, 2008.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, 1928 – Processo penal. – 23. ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2001.

SILVA, José Afonso da - Curso de Direito Constitucional Positivo-, Malheiros Editores, 30ª edição, 2007.


[1] Procurador do Município de Sorocaba; Foi Policial Militar em São Paulo; Bacharel em Direito; Aluno da pós-graduação em Direito Militar da Universidade Cruzeiro do Sul.

[2] SILVA, José Afonso da - Curso de Direito Constitucional Positivo-, Malheiros Editores, 30ª edição, 2007, p. 105.

[3] BULOS, Uadi Lammêngo – Direito Constitucional ao alcance de todos. – São Paulo: Saraiva, 2009, p. 221.

[4] “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...]II - a dignidade da pessoa humana;”

[5] BULOS, Uadi Lammêngo – Direito Constitucional ao alcance de todos. – São Paulo: Saraiva, 2009, p. 269.

[6] ASSIS, Jorge César de – Código de processo penal militar – 1º volume (artigos 1º a 383). – Curitiba: Juruá, 2012, p. 426.

[7] CAPEZ, Fernando – Curso de processo penal. – 15. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva: 2008, p. 332/333.

[8] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, 1928 – Processo penal. – 23. ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2001, p. 262.

[9] MENDONÇA, Andrey Borges de – Nova reforma do Código de Processo Penal: comentado artigo por artigo. – São Paulo: Método, 2008, p. 90/94.

[10] ASSIS, Jorge César de – Código de processo penal militar – 1º volume (artigos 1º a 383). – Curitiba: Juruá, 2012, p. 28.

[11] Idem, p. 30.