sábado, 18 de maio de 2019

DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO: breves apontamentos sobre as companhias militares privadas

CELSO TARCISIO BARCELLI1


Breve introdução ao Direito Internacional Humanitário - DIH

É falsa a afirmação popular de que na guerra e no amor valem tudo, ao menos quanto à primeira existem inúmeros instrumentos normativos internacionais que limitam os meios e métodos de combate.

As regras costumeiras do direito de guerra nasceram quase que simultaneamente com as primeiras relações entre as comunidades.

Em uma definição resumidíssima e simplificada, o DIH é um conjunto de normas internacionais, que limitam o direito de as partes em conflito escolherem livremente os métodos e meios de combate, com o objetivo de prevenir a mutua aniquilação naturalmente decorrente do uso da violência sem limites. O DIH existe para preservar a própria humanidade2. Seus principais destinatários são os soldados.

Neste aspecto, importante esclarecer breves diferenças entre Diretos Humanos e Direito Humanitário (apesar de parte da doutrina compreender que os dois estão fundidos).

Direitos humanos: protegem qualquer pessoa em qualquer tempo contra atos de agentes do seu próprio Estado; alguns direitos podem ser derrogados durante estado de sítio.

Direito humanitário: protege civis, feridos, prisioneiros de guerra, pessoal sanitário e religioso e da Cruz Vermelha em tempo de conflito armado contra atos do próprio Estado ou outro Estado e grupos armados sob um comando responsável, são direitos que nunca podem ser derrogados.

Existem vários tratados3que cuidam da regulamentação dos meios e métodos de combate, proteção de pessoas e bens, proibição do uso de certas armas etc., mas citam-se como fonte principal do DIH os costumes internacionais4, a Convenção de Genebra de 1949 e seu respectivo Protocolo Adicional I de 1977.


Conceito de Combatente

Os membros das forças armadas são considerados combatentes legais ou privilegiados, que podem não ser processados por participar das hostilidades, enquanto respeitarem o Direito Internacional Humanitário (DIH)5.

Civis podem ser considerados combatentes se pegarem em armas espontaneamente para combater tropas invasoras, tragam armas à vista e respeitem as leis de guerras. Como não há uma definição taxativa de combatente, alguns apontam que o importante para obter o status de combatente é respeitar o DIH, portar arma ostensivamente e estar sob um comando responsável ligado a uma das partes em conflito.

Os combatentes têm direito de participara das hostilidades e se capturados são considerados prisioneiros de guerra, a condição de prisioneiro de guerra importa em dois importantes direitos, a saber: a) enquanto capturado tem direito a tratamento justo, não ser insultado, não sofrer represálias e cuidados médicos; b) imunidade como combatente, impede que seja julgado por atos de guerra ou por atos praticados antes de ser capturado como prisioneiro de guerra.

Alguns civis engajados ilegalmente nas hostilidades podem até receber a condição de prisioneiro de guerra quando capturados, todavia, não recebem a imunidade de combatente6.


Companhias militares privadas ou mercenários?

Um exército regular normalmente é empregado em uma guerra por decisão de um parlamento; em outras palavras, o soldado regular luta porque o seu país necessita e não porque quer.

O mercenário vai à guerra por dinheiro, isto, dizem alguns, os tornam combatentes7 cruéis8.

Modernamente, operam no mundo as companhias militares privadas, tratam-se de verdadeiras empresas de negócios objetivando lucros (algumas até com ações na bolsa), criadas normalmente por ex-oficiais de alta patente (generais etc.) que empregam ex-militares ou policias com carreira em forças especiais, que uma vez fora da caserna não conseguem se adaptar ao estilo de vida civil, necessitam do ambiente militar, da camaradagem, das armas, da adrenalina do combate9.

Embora digam que prestam apenas serviços de proteção de pessoas, instalações, bens e comboios, treinamento a forças locais e operações de logística e sistema de armas, o que se chama de “proteger e escapar”; a verdade é que algumas destas companhias conduzem verdadeiras operações militares, funções ativas e não defensivas.

Ao citar Keegan, CINELLI argumenta que todos os exércitos regulares costumam recrutar mercenários para travar escaramuças10 por eles; na atualidade, o que justifica o emprego de CMPs é o baixo custo de contratação em comparação com formação de membros de exércitos regulares (uma observação nossa, o baixo custo além de outros fatores, se deve ao fato de que os empregados das CMPs foram formados pelo próprio Estado).

Na acepção tradicional da palavra, os empregados das CMPs seriam mercenários, porque lutam por dinheiro, lucro é o objetivo de qualquer empresa e não é diferente com as CMPs.

Os executivos destas empresas rechaçam o título de mercenários modernos, aproveitando inclusive um vácuo legislativo sobre o tema.

É que a situação jurídica destas empresas é nebulosa porque não existe nenhuma norma que regulamentem suas atividades, salvo a autorregulação do próprio setor.

Ademais, o art. 47 do Protocolo Adiciona I à Convenção de Genebra de 1949 impõe tantos requisitos, que juridicamente é difícil enquadrar alguém como mercenário; é neste contexto que operam as CPMs.

Bastante didática a lição de CINELLI:

Apesar de operarem em um domínio militar, eles não são parte das forças militares e permanecem fora da cadeia de comando. São civis, mas não como costumamos enxergar os civis – inocentes expectadores ou não combatentes acompanhando as forças armadas-, já que lhes são atribuídas tarefas militares. Essa ausência de uma definição significa que eles carecem de proteção legal caso sejam capturados pelo inimigo, ou seja, estariam na mesma área nebulosa – segundo uma perspectiva norte-americana – dos ‘combatentes ilegais’ presos em Guantánamo”11.


Política externa e uso de companhias militares privadas

Talvez a falta de regulação destas empresas seja proposital e a expressão-chave para esta conclusão é “permanecem fora da cadeia de comando”, isto significa que os atos praticados pelos empregados das CMPs não podem ser imputados ao Estado.

Cinelli esclarece:

[…] o mais preocupante seja mesmo o problema de controlar e regular as ações desses contratados numa área de conflito onde o sistema legal tenha entrado em colapso e os códigos normais de conduta, existentes em tempos de paz, a eles sejam inaplicáveis. Além disto, como civis, eles não podem ser submetidos a cortes marciais. Após três anos de operações no Iraque, nenhum empregado de CMP havia sido acusado de qualquer crime, o que significa, conforme assinalaram Gutman e col. (2007, p. 337), que ‘ou o mercado encontrou 20.000 perfeitos anjos em meio ao cenário de guerra, ou o hiato jurídico está permitindo que crimes sejam cometidos impunemente’ […] seu emprego não padece dos mesmos riscos políticos envolvidos em baixas de soldados regulares12 13.


A mais famosa CMP, a americana Blackwater, atualmente rebatizada de Academi, é uma empresa militar privada fundada em 1997, que prestou serviço de segurança na embaixada americana em Bagdá, escolta de autoridades no Iraque e operações de apoio ao exército do USA no Oriente Médio, a empresa também possuem atividades na Colômbia, entre outros países.

Há rumores de que a Blackwater tenha operado em plataformas de petróleo administradas por empresas americanas e situadas na plataforma continental brasileira, devidamente licitadas pela ANP. Recentemente surgiram notícias de que a Blackwater tem um plano para colocar 5 mil soldados mercenários na Venezuela para auxiliar o líder da oposição Juan Guaidó a derrubar o Presidente (Ditador) Maduro14.

O Wagner Group é uma empresa militar privada (CMP) cuja missão principal é cumprir missões militares atendendo a políticas externas da Rússia. A WAGNER firmou contrato com o governo sírio, fixando seu pagamento na forma de participação de 25% da produção dos campos de petróleo que, porventura, ela ocupasse. A empresa conduziu operações militares na Ucrânia/Criméia, Síria, República Centro-Africana e Sudão15.

Também circula notícia de que empresas militares privadas que fazem missões secretas para a Rússia realizaram viagens à Venezuela nos últimos dias para reforçar a segurança do presidente Nicolas Maduro16.

Conclui-se que as CMPs são um eficiente e poderoso mecanismo da política externa, como empresas privadas e não tendo laços formais com os governos, operam livre de fiscalização e à margem das leis de guerra, o emprego destas empresas não ocasiona os riscos políticos do emprego de tropas regulares, porém são um enorme risco aos direitos humanos.


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1 Pós-graduado em Direito Militar pela Universidade Cruzeiro do Sul, Procurador do Município de Sorocaba, Advogado, foi policial militar em São Paulo.

2 Conceito extraído da obra de CINELLI, Carlos Frederico. Direito internacional humanitário: ética e legitimidade na aplicação da força em conflitos armados. Curitiba, Juruá, 2011.

3 Aqui no sentido de tratado, convenção, declaração, pacto, protocolo, estatuto, entre outras denominações.

4 Jus cogens são as normas imperativas do Direito Internacional, desenvolvidas por meio de tratados e de costumes internacionais, são cogentes porque observadas por todos os sujeitos de Direito Internacional.

5 Cruz Vermelha: <https://www.icrc.org/pt/doc/resources/documents/misc/6eqnsd.htm> acesso em 06.02.2019.

6 CINELLI, op. cit., p. 91/92.

7 Aqui a palavra combatente é usada em sentido amplo, significando quem combate ou está preparado para combater e não no sentido jurídico do DIH. "combatente", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/ combatente [consultado em 07-02-2019].

8 CINELLI, p. 148, citando KALDOR, esclarece que a motivação econômica é inadequada para a guerra, em nome de batalhas humanizadas, os mercenários não são amparados pelo DIH, porque lutam sem “dar quartel” (significa que, numa batalha, não se acolhe o inimigo, mesmo que ele se renda).

9 Alguns usam este argumento para justificar que não são mercenários, porque lutam por outros motivos e não por dinheiro, argumento que não convence, porque, com certeza, também os mercenários devem lutar pela adrenalina e não apenas pelo dinheiro.

10 Rápido encontro entre os elementos avançados de dois exércitos – luta de pequenas proporções.
11 CINELLI, p. 153.

12 Idem, p. 152.

13 Apesar desta constatação, em 2015 um ex-agente da empresa de segurança privada Blackwater foi sentenciado à prisão perpétua e outros três receberam penas de 30 anos de prisão pelo massacre ocorrido em 2007 no Iraque – noticia do G1, acesso em 18.05.2019 em: .

14 Estadão – acesso em 18.05.2019, disponível em: .

15 DEFESANET – acesso em 18.05.2019, disponível em: .

16 O GLOBO – acesso em 18.05.2019, disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/mercenarios-ligados-ao-kremlin-viajaram-venezuela-23401719.