segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

Vedação do direito à greve aos servidores da segurança pública

Celso Tarcisio Barcelli*

O Supremo Tribunal Federal é quem dá a última palavra em termos de interpretação da Constituição da República.

Significa que devemos respeitar e obedecer as suas decisões.

No entanto, isto não significa que não possamos criticar algumas posições da Corte Superior.

Ora, a doutrina esclarece que todas as pessoas que se deparam com o texto constitucional são seus potenciais interpretes (Peter Häberle – “Sociedade aberta dos interpretes da constituição” - Mark Tushnet, professor de Harved, chama de constitucionalismo popular).

Portanto, do nosso ponto de vista, a respeitável Corte Suprema ao estabelecer que “o exercício do direito de greve, sob qualquer forma ou modalidade, é vedado aos policiais civis e a todos os servidores públicos que atuem diretamente na área de segurança pública” (Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 654432), não deu a melhor interpretação à Constituição, porque restringiu um direito fundamental, algo que o constituinte originário não fez.

Ao fundamentar sua decisão o STF entendeu que: “No confronto entre o direito de greve e o direito da sociedade à ordem pública e da paz social, deve prevalecer o interesse público e social em relação ao interesse individual de determinada categoria. E essa prevalência do interesse público e social sobre o direito individual de uma categoria de servidores públicos exclui a possibilidade do exercício do direito de greve, que é plenamente incompatível com a interpretação do texto constitucional”.

Nitidamente, o Supremo fez uma ponderação de valores para declarar a vedação da greve, afirmando que no confronto entre o direito de greve dos servidores civis e o direito da sociedade à ordem pública, prevalece o segundo.

Ocorre que a própria Constituição previu solução para a greve de servidores civis da segurança pública, bem como ampliou o direito à greve a todos servidores públicos, excepcionado apenas os militares (art. 37, inc. VII, art. 42, § 1º c/c art. 142, § 3º, inc. IV).

Assim sendo, conforme restará evidenciado, era absolutamente desnecessária esta ponderação de interesses.

Ao decidir a questão, a Corte Maior poderia ter encontrado solução que preservasse os direitos fundamentais em confronto, utilizando-se do papel eminentemente residual da Polícia Militar e das Forças Armadas, explico:

Com efeito, a PM é força auxiliar e reserva do Exército, nos termos do art. 144, § 6º da Constituição. Cabe às Polícias Militares do Brasil atender à convocação, inclusive mobilização, do Governo Federal em caso de guerra ou para prevenir ou reprimir grave perturbação da ordem incorporando-se à Força Terrestre (Exército) para defesa interna e territorial (Roberto Botelho – Direito Militar Doutrina e Aplicações – 1ª edição – Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p.195/198).

Por outro lado, a preservação da ordem pública é atribuição exclusiva da PM (art. 144, § 5º, da CF); vale dizer, as atribuições da PM são muito mais amplas do que a de qualquer outra polícia. Ora, a Polícia Federal exerce o papel de polícia judiciária federal, de reprimir o tráfico de drogas, contrabando, descaminho, a função de polícia marítima, aeroportuária e de fronteira; às Polícias Rodoviária e Ferroviária Federal cabe o patrulhamento de rodovias e ferrovias federais; às Polícias Civis cabe a polícia judiciária.
A competência ampla da Polícia Militar na preservação da ordem pública engloba inclusive, a competência específica dos demais órgãos policiais, no caso de falência operacional deles, a exemplo de greves ou outras causas, que os tornem inoperantes ou ainda incapazes de dar conta de suas atribuições, funcionando, então, a Polícia Militar como um verdadeiro exército da sociedade.  Bem por isso as Polícias Militares constituem os órgãos de preservação da ordem pública para todo o universo da atividade policial em tema da –ordem pública- e, especificamente, da -segurança pública. (Advocacia Geral da União - Parecer nº GM – 025 – disponível em: http://www.agu.gov.br/sistemas/site/PaginasInternas/NormasInternas/AtoDetalhado.aspx?idAto=8417 –acesso em 07mar14 às 15h30min (grifamos)).
Neste prisma, a Constituição da República atribuiu também às Forças Armadas o papel de defesa da ordem interna.
“Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”
Esclarece Uadi Lammêngo Bulos que: “Esporadicamente, contudo, incumbe-lhes defender a lei e a ordem interna, atribuições típicas de segurança pública” (Direito Constitucional ao alcance de todos – São Paulo: Sariava, 2009, p. 558.).

Em tais situações, portanto, as Forças Armadas, porque incumbidas (emergencial e temporariamente) da preservação, ou do restabelecimento, da ordem pública, devem desempenhar o papel de Polícia Militar, têm o dever de exercitar - a cada passo, como se fizer necessário - a competência da Polícia Militar. Decerto, nos termos e limites que a Constituição e as leis impõem à própria Polícia Militar (v., por exemplo, do art. 5º da Carta, os incisos: II; III, parte final; XI e XVI). - (Advocacia Geral da União - Parecer nº GM – 025).

Portanto temos o seguinte:

a)      A cláusula “preservação da ordem pública” insculpida no art. 144, § 5º, da CF, concede ampla competência para atuação da Polícia Militar como órgão de preservação da ordem pública para todo o universo da atividade policial, podendo substituir demais órgãos policiais no caso de falência operacional deles, a exemplo de greves;

b)      Nos termos do art. 142, da CF, as Forças Armadas, emergencial e temporariamente, podem atuar na preservação da ordem pública desempenhando a competência da Polícia Militar.

Esta é a solução constitucional para a greve dos servidores civis da segurança pública, basta que a PM assuma o papel deles durante a greve e, se necessário, que as Forças Armadas suplementem o patrulhamento nas ruas.

Foi por este motivo que a Constituição vedou apenas aos Militares (Policiais, Bombeiros e membros das Forças Armadas) o direito à sindicalização e greve, isto, pois, eles funcionam como última reserva de proteção da sociedade, constituem, e apenas eles, uma categoria diferenciada de servidores, não cabendo fazer tal extensão aos policias civis.

Ademais, os argumentos utilizados pelo Supremo podem ser facilmente utilizados para aniquilar por completo o direito fundamental à greve previsto expressamente na Constituição (art. 37, VII e art. 9º).

Vamos ponderar?

1-      Entre o direito fundamental a educação e o direito “egoístico” dos professores a greve por aumento de salário, qual deve prevalecer?

2-      Entre o direito fundamental à saúde e o direito “egoístico” dos médicos à greve por melhoria das condições de trabalho, qual deve prevalecer?

Vamos ampliar a vedação para a iniciativa privada?

Como sabemos, alguns serviços públicos podem ser prestados por empresas privadas em regime de concessão, permissão ou autorização, cujos empregados estão sob o regime privado da CLT; vejamos:

1-      Entre o direito fundamental da sociedade ao transporte público (art. 6º, CF) ou o direito “egoístico” dos motoristas de ônibus à greve por aumento de salário, qual deve prevalecer?

2-      Entre o direito da sociedade à coleta do lixo e a limpeza dos logradouros - serviço público essencial, ligado à saúde pública - e o direito dos trabalhadores do setor à greve por melhoria das condições de trabalho, qual de deve prevalecer?

Destarte, a ponderação de interesses deve ser usada com extrema cautela para não fazer de direitos fundamentais letra morta, não pode tal ponderação ser utilizada para reescrever a Constituição ao sabor das conveniências de interesses políticos dos grupos de poder.

Assim sendo, a própria Carta Constitucional contém solução para o conflito de interesses entre o direto à greve dos servidores civis da segurança pública e o direito social à ordem pública, qual seja: o emprego da Polícia Militar em substituição aos órgãos policiais paralisados e, se necessário, no mesmo contexto fático, a utilização das Forças Armadas em conjunto com a PM.

É por esta razão que a CF vedou greve aos militares e não aos demais servidores, tal solução preservaria o direito fundamental à greve dos servidores civis (conforme previsto originariamente na CF) e o direito da sociedade à ordem pública.

*Procurador do Município de Sorocaba; Foi Policial Militar em São Paulo; Bacharel em Direito; pós-graduado em Direito Militar pela Universidade Cruzeiro do Sul.

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