Celso Tarcisio Barcelli*
O Supremo Tribunal Federal é quem dá a última palavra em
termos de interpretação da Constituição da República.
Significa que devemos respeitar e obedecer as suas decisões.
No entanto, isto não significa que não possamos criticar
algumas posições da Corte Superior.
Ora, a doutrina esclarece que todas as pessoas que se deparam
com o texto constitucional são seus potenciais interpretes (Peter Häberle – “Sociedade
aberta dos interpretes da constituição” - Mark Tushnet, professor de Harved,
chama de constitucionalismo popular).
Portanto, do nosso ponto de vista, a respeitável Corte
Suprema ao estabelecer que “o exercício do direito de greve, sob
qualquer forma ou modalidade, é vedado aos policiais civis e a todos os
servidores públicos que atuem diretamente na área de segurança pública”
(Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 654432), não deu a melhor interpretação à Constituição, porque restringiu um direito fundamental, algo que o constituinte originário não fez.
Ao fundamentar sua decisão o STF entendeu que: “No
confronto entre o direito de greve e o direito da sociedade à ordem pública e
da paz social, deve prevalecer o interesse público e social em relação ao
interesse individual de determinada categoria. E essa prevalência do interesse
público e social sobre o direito individual de uma categoria de servidores
públicos exclui a possibilidade do exercício do direito de greve, que é
plenamente incompatível com a interpretação do texto constitucional”.
Nitidamente, o Supremo fez uma ponderação de valores para
declarar a vedação da greve, afirmando que no confronto entre o direito de
greve dos servidores civis e o direito da sociedade à ordem pública, prevalece
o segundo.
Ocorre que a própria Constituição previu solução para a greve
de servidores civis da segurança pública, bem como ampliou o direito à greve a
todos servidores públicos, excepcionado apenas os militares (art. 37, inc. VII,
art. 42, § 1º c/c art. 142, § 3º, inc. IV).
Assim sendo, conforme restará evidenciado, era absolutamente
desnecessária esta ponderação de interesses.
Ao decidir a questão, a Corte Maior poderia ter encontrado solução que preservasse os direitos fundamentais em confronto, utilizando-se do papel
eminentemente residual da Polícia Militar e das Forças Armadas, explico:
Com efeito, a PM é força auxiliar e reserva do Exército, nos
termos do art. 144, § 6º da Constituição. Cabe às Polícias Militares do Brasil
atender à convocação, inclusive mobilização, do Governo Federal em caso de
guerra ou para prevenir ou reprimir grave perturbação da ordem incorporando-se
à Força Terrestre (Exército) para defesa interna e territorial (Roberto Botelho
– Direito Militar Doutrina e Aplicações – 1ª edição – Rio de Janeiro: Elsevier,
2011, p.195/198).
Por outro lado, a
preservação da ordem pública é atribuição exclusiva da PM (art. 144, §
5º, da CF); vale dizer, as atribuições da PM são muito mais amplas do que a de
qualquer outra polícia. Ora, a Polícia Federal exerce o papel de polícia
judiciária federal, de reprimir o tráfico de drogas, contrabando, descaminho, a
função de polícia marítima, aeroportuária e de fronteira; às Polícias
Rodoviária e Ferroviária Federal cabe o patrulhamento de rodovias e ferrovias federais;
às Polícias Civis cabe a polícia judiciária.
A competência
ampla da Polícia Militar na preservação da ordem pública engloba
inclusive, a competência específica dos demais órgãos policiais, no caso de
falência operacional deles, a exemplo
de greves ou outras causas, que os tornem inoperantes ou ainda
incapazes de dar conta de suas atribuições, funcionando, então, a Polícia
Militar como um verdadeiro exército da sociedade. Bem por isso as Polícias Militares constituem
os órgãos de preservação da ordem pública para todo o universo da atividade
policial em tema da –ordem pública- e, especificamente, da -segurança pública. (Advocacia
Geral da União - Parecer nº GM – 025 – disponível em: http://www.agu.gov.br/sistemas/site/PaginasInternas/NormasInternas/AtoDetalhado.aspx?idAto=8417
–acesso em 07mar14 às 15h30min (grifamos)).
Neste prisma, a Constituição da
República atribuiu também às Forças Armadas o papel de defesa da ordem interna.
“Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela
Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais
permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina,
sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da
Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer
destes, da lei e da ordem.”
Esclarece Uadi Lammêngo Bulos que: “Esporadicamente,
contudo, incumbe-lhes defender a lei e a ordem interna, atribuições típicas de
segurança pública” (Direito Constitucional ao alcance de todos – São
Paulo: Sariava, 2009, p. 558.).
Em tais situações, portanto, as Forças Armadas, porque incumbidas (emergencial e temporariamente)
da preservação, ou do restabelecimento, da ordem pública, devem desempenhar
o papel de Polícia Militar, têm o dever de exercitar - a cada passo, como se
fizer necessário - a competência da Polícia Militar. Decerto, nos termos e
limites que a Constituição e as leis impõem à própria Polícia Militar (v., por
exemplo, do art. 5º da Carta, os incisos: II; III, parte final; XI e XVI). - (Advocacia
Geral da União - Parecer nº GM – 025).
Portanto temos o seguinte:
a)
A
cláusula “preservação da ordem
pública” insculpida no art. 144, § 5º, da CF, concede ampla competência para
atuação da Polícia Militar como órgão
de preservação da ordem pública para todo o universo da atividade policial,
podendo substituir demais órgãos policiais no caso de falência
operacional deles, a exemplo de
greves;
b)
Nos
termos do art. 142, da CF, as Forças Armadas, emergencial e temporariamente, podem atuar na preservação da ordem
pública desempenhando a competência da Polícia Militar.
Esta é a solução constitucional para a greve dos servidores
civis da segurança pública, basta que a PM assuma o papel deles durante a greve
e, se necessário, que as Forças Armadas suplementem o patrulhamento nas ruas.
Foi por este motivo que a Constituição vedou apenas aos
Militares (Policiais, Bombeiros e membros das Forças Armadas) o direito à sindicalização
e greve, isto, pois, eles funcionam como última reserva de proteção da
sociedade, constituem, e apenas eles, uma categoria diferenciada de servidores,
não cabendo fazer tal extensão aos policias civis.
Ademais, os argumentos utilizados pelo Supremo podem ser
facilmente utilizados para aniquilar por completo o direito fundamental à greve
previsto expressamente na Constituição (art. 37, VII e art. 9º).
Vamos ponderar?
1-
Entre
o direito fundamental a educação e o direito “egoístico” dos professores a greve
por aumento de salário, qual deve prevalecer?
2-
Entre
o direito fundamental à saúde e o direito “egoístico” dos médicos à greve por
melhoria das condições de trabalho, qual deve prevalecer?
Vamos ampliar a vedação para a iniciativa privada?
Como sabemos, alguns serviços públicos podem ser prestados
por empresas privadas em regime de concessão, permissão ou autorização, cujos
empregados estão sob o regime privado da CLT; vejamos:
1-
Entre
o direito fundamental da sociedade ao transporte público (art. 6º, CF) ou o
direito “egoístico” dos motoristas de ônibus à greve por aumento de salário,
qual deve prevalecer?
2-
Entre
o direito da sociedade à coleta do lixo e a limpeza dos logradouros - serviço
público essencial, ligado à saúde pública - e o direito dos trabalhadores do setor
à greve por melhoria das condições de trabalho, qual de deve prevalecer?
Destarte, a ponderação de interesses deve ser usada com
extrema cautela para não fazer de direitos fundamentais letra morta, não pode
tal ponderação ser utilizada para reescrever a Constituição ao sabor das
conveniências de interesses políticos dos grupos de poder.
Assim sendo, a própria Carta Constitucional contém solução
para o conflito de interesses entre o direto à greve dos servidores civis da
segurança pública e o direito social à ordem pública, qual seja: o emprego da
Polícia Militar em substituição aos órgãos policiais paralisados e, se
necessário, no mesmo contexto fático, a utilização das Forças Armadas em conjunto com a PM.
É por esta razão que a CF vedou greve aos militares e não aos
demais servidores, tal solução preservaria o direito fundamental à greve dos servidores civis (conforme previsto originariamente na CF) e o direito da sociedade à ordem pública.
*Procurador do Município de Sorocaba; Foi Policial Militar em São Paulo; Bacharel em Direito; pós-graduado em Direito Militar pela Universidade Cruzeiro do Sul.
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